sexta-feira, 17 de outubro de 2014

ASTREINTES & NOVO CPC (ou COMO OS DEPUTADOS PODEM PIORAR O NOVO CPC)


Quem preferir ver/ouvir - ao invés de ler - pode acessar à palestra que proferi sobre o tema. Clique na imagem acima.

Astreintes, como se sabe, é o termo francês para designar a nossa multa coercitiva, prevista no art. 461, §4º, do Código de Processo Civil em vigor, que serve para compelir alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa.
A discussão que trago neste novo post é sobre a destinação do valor eventualmente arrecadado com a aplicação dessa multa.
Já tratei desse tema, muito rapidamente, no post sobre as "objeções pragmáticas ao novo CPC". Agora retorno ao tema com mais intensidade.
Em termos pragmáticos, essa discussão é relevantíssima, pois diz respeito à efetivação das ordens judiciais e à própria autoridade da jurisdição.

Segundo a corrente majoritária da doutrina e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o valor dessa multa deve reverter em prol do AUTOR ou do beneficiário da ordem judicial.

PRAGMATICAMENTE, ESSA SOLUÇÃO É DESASTROSA PARA A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL.

Comecemos com um exemplo prático.  
Imagine-se a propositura de uma ação revisional de contrato bancário, através da qual o autor pretende discutir o seu saldo devedor, orçado em R$ 5.000,00; em sede de antecipação de tutela, o autor postula a retirada de seu nome dos cadastros restritivos de crédito, no prazo de dez dias. O juiz da causa, entendendo presentes a verossimilhança das alegações e o fundado receio de dano de difícil reparação, defere a liminar antecipatória, conforme requerida, impondo ao réu, como astreinte, uma multa diária de R$ 50.000,00, considerando, dentre outros fatores, a sua dimensão econômica. Por negligência sua, o réu cumpre a ordem judicial com vinte dias de atraso. 
O autor, reclamando para si o produto da multa aplicada, requer a execução de R$ 1.000.000,00.
A simples possibilidade de uma execução, nesses termos, já é capaz de demonstrar que existe algo errado nessa solução.
Não se questiona o acerto do juiz na fixação da multa. Tratando-se de uma instituição financeira, como na hipótese, não é despropositada a atribuição de um valor elevado a título de multa diária, uma vez que haverá de estabelecer-se montante tal que concretamente influa no comportamento do demandado, sem limitar-se ao valor da obrigação, nem ao dos danos eventualmente derivados da violação da ordem.
Também não se questiona que o sujeito passivo da sanção deverá arcar com o pagamento do montante total, eis que se trata de consequência jurídica da sua própria conduta desobediente.
Desejando livrar-se da multa, que cumpra a ordem!

Não se pode tolerar, em país sério, o atraso sequer de um dia no cumprimento de ordem judicial

Não se deve admitir a possibilidade generalizada de redução retroativa do valor da multa que já incidiu, pois a simples perspectiva para o réu de que poderá haver um “abatimento” no valor da multa, que já deveria ter sido paga, representa perigoso enfraquecimento do mecanismo coercitivo.

É incontestável que a atribuição do crédito da multa ao autor, além das perdas e danos a que fará jus, representa enriquecimento sem causa.

É preciso deixar claro que todos os danos experimentados pelo autor em decorrência do descumprimento da ordem judicial serão avaliados na respectiva ação de perdas e danos. A multa coercitiva não se destina a reparar esse dano. Se assim é, o recebimento da multa, pelo autor, não exibe título jurídico, ensejando enriquecimento injusto e ilegítimo.
 Além de ensejar o enriquecimento sem causa do autor, o que, por si só, já é suficiente para reprovar a solução hegemônica de destinação da multa (destinar o produto da multa para o autor), há uma consequência mais grave: o mecanismo coercitivo estará seriamente comprometido, enfraquecendo a própria jurisdição estatal.

Por quê?

Como já se constatou na experiência estrangeira, especialmente em França, os juízes, sabedores da cumulação das perdas e danos com o elevado valor da multa, gerando excessivo e desproporcional ganho ao autor, acabam, na práticapor fixar o valor da multa coercitiva em valores muito abaixo do esperado para coagir ou, ainda, terminam por revisar o valor final da multa imposta, de forma a adequá-la ao valor da pretensão do autor. Nesse último caso, o réu tende a menosprezar o rigor da imposição pecuniária, sabendo que, ao final, irá pagar muito menos.

Não se pode simplesmente ignorar esse fato da realidade!! 

Tomando por base a jurisprudência federal, é possível encontrar inúmeros acórdãos fixando ou revendo a multa diária imposta à Fazenda Pública (normalmente o INSS), em valores irrisórios, em muitos casos no patamar de R$ 25,00 (vinte e cinco reais) por dia de atraso. A multa, fixada nesse limite, contra uma entidade pública federal, torna-se praticamente simbólica, destituída de força coercitiva. Ainda que venha a ser aplicada diretamente ao agente público responsável pelo descumprimento da ordem, o valor é baixo para fins coercitivos, no sentido de garantir o cumprimento da ordem no prazo estipulado. Relembre-se que a multa, enquanto coerção, não foi feita para ser cobrada; se for necessário cobrá-la, é porque falhou.

A atribuição da multa ao autor é motivo para enfraquecimento da eficiência do mecanismo coercitivo, pois os juízes brasileiros, tais como os juízes franceses, acabam, na prática, por fixar a multa em valor diminuto (ou posteriormente reduzir o valor final), sem que ela se preste a intimidar o réu, com isso visando a evitar o enriquecimento desproporcional do autor.
Não é possível mais adotar uma posição de conformismo, admitindo ad perpetuam essa antinomia evidente e maléfica ao sistema de jurisdição nacional. Não será de todo inverossímil afirmar, e esperar, que a permanecer essa posição doutrinária e jurisprudencial (a multa para o autor), sejam criados escritórios especializados na cobrança de multas coercitivas e a instalação de uma verdadeira “indústria de astreintes”, estimulando a corrupção e as chicanas para a caracterização do descumprimento de decisões judiciais. Ou o mais absurdo, tenha-se, na realidade do nosso sistema processual, demandantes rezando aos céus pelo descumprimento de uma ordem judicial, o que poderá levá-lo a uma repentina riqueza!

(Mesmo para fins práticos, a teoria geralmente acaba com a coisa mais importante no final)

Acrescente-se a esses argumentos o fato de que as posições doutrinárias que limitam a exigibilidade da multa (e enfraquecem seu poder), impedindo sua cobrança imediata ou sua manutenção no caso de decisão final desfavorável, ou que autorizam a revisão final do valor, têm em consideração a destinação dos valores ao autor e o princípio de evitar o enriquecimento sem causa.
O que se percebe, enfim, é que a destinação ao autor do produto da multa hoje prevista no artigo 461, § 4º, do CPC não só é inadequada, pelo enriquecimento sem causa que proporciona, como prejudicial ao sistema jurisdicional, pois macula o mecanismo coercitivo, fragilizando a autoridade estatal e desacreditando as decisões judiciais.

E O NOVO CPC?

A Comissão Fux, responsável pelo anteprojeto do novo CPC, sensibilizou-se com o problema, propondo uma divisão mais adequada do produto da multa:

Art. 503. 
§ 5º O valor da multa será devido ao autor até o montante equivalente ao valor da obrigação, destinando-se o excedente à unidade da Federação onde se situa o juízo no qual tramita o processo ou à União, sendo inscrito como dívida ativa.
§ 6º Sendo o valor da obrigação inestimável, deverá o juiz estabelecer o montante que será devido ao autor, incidindo a regra do § 5º no que diz respeito à parte excedente.
§ 7º O disposto no § 5º é inaplicável quando o devedor for a Fazenda Pública, hipótese em que a multa será integralmente devida ao credor.

A solução foi pragmática. Satisfez o intuito "indenizatório", destinando parte da multa para o autor (até o limite do seu direito no processo), e deixou os juízes e tribunais tranquilos para fixar multas altas suficientes para coagir, pois o excedente passaria a ser destinado ao Estado. O único problema não resolvido foi em relação à Fazenda Pública devedora (§7º), o que nos obrigou a redigir uma nota técnica a respeito, enquanto membro da Comissão de Reformas Processuais da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), a qual foi acolhida no Substitutivo do Senado Federal, passando o tema a ser assim disciplinado:

Art. 551.
§ 5º O valor da multa será devido ao exequente até o montante equivalente ao valor da obrigação, destinando-se o excedente à unidade da Federação onde se situa o juízo no qual tramita o processo ou à União, sendo inscrito como dívida ativa.
§ 6º Sendo o valor da obrigação inestimável, deverá o juiz estabelecer o montante que será devido ao autor, incidindo a regra do § 5º no que diz respeito à parte excedente.
§ 7º Quando o executado for a Fazenda Pública, a parcela excedente ao valor da obrigação principal a que se refere o § 5º, será destinada a entidade pública ou privada, com finalidade social.

Estaria resolvida a situação da destinação da multa coercitiva, com as astreintes fortalecidas para garantir maior autoridade às decisões judiciais.

Mas todo esse avanço foi lançado por terra quando o projeto chegou à Câmara dos Deputados, que resolveu ignorar completamente a experiência e a realidade, abolindo as melhorias alcançadas no Senado, e destinando completamente ao autor o produto da multa (cf. art. 551, § 2º), mantendo as coisas no mesmo estado em que estão hoje!!! 

Que o Pragmatismo ilumine os nossos Senadores para que restabeleçam o texto original sobre o tema, por eles mesmos aprovado em 2010.


Para maiores informações, inclusive referência bibliográficas, acessem o inteiro da minha dissertação de mestrado em direito, aprovada na Universidade Federal do Paraná (2009), sobre o tema deste  post
Eis o link:




3 comentários:

  1. Caro Dr. Vicente, da leitura do seu comentário e de sua excelente tese de doutorado surgiu-me uma inquietação. Embora meu sofrível conhecimento a respeito das noções teóricas envolvendo pragmatismo e processo não me permitam tomar conclusões muito aprofundadas, fiz a seguinte reflexão. Se o pragmatismo aplicado ao processo comunica-se com outros saberes e apropria-se (ou melhor, aproxima-se) das noções do Law and Economics, parece-me bastante interessante a ideia de “incentivo” e de que os litigantes “são observados como agentes econômicos racionais e, como tais, pessoas que se comportam à medida em que sua análise probabilística de custo-benefício indicar ganho.”
    Se isso é verdade, ao se atribuir o crédito da multa ao autor, não estar-se-ia outorgando ao maior interessado na efetivação da decisão – e que, portanto, tem o maior incentivo e os maiores benefícios – o controle da eficiência do mecanismo coercitivo?
    Em outras palavras, não seria mais interessante deixar que o agente mais eficiente (já que tem mais incentivo) tenha o controle da execução e do recebimento do crédito gerado pela multa?
    Evidentemente que eu parto do pressuposto que iniciar a execução da multa (do crédito acumulado) é uma forma eficiente de forçar o devedor a cumprir – o que pode não ser um entendimento pacífico.
    Penso nisso porque, ao que me parece, no final das contas, alguém irá beneficiar-se (indevidamente) da multa, quer seja o Estado, quer seja o autor. Porém, numa perspectiva fundada na análise econômica do direito, o particular – quando tem incentivos – costuma ser mais eficiente que o Estado.

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  2. Obrigado pelo seu comentário Bruno! Sem dúvida a tua preocupação é pragmática, pois pensa e avalia uma solução processual pela perspectiva das suas consequências práticas para o sistema de justiça.
    A tua opinião é coerente. Conta inclusive com o opoio de processualistas que pensaram a fundo o problema, como o Eduardo Talamini (Tutela dos Deveres de Fazer e de Não Fazer).
    Pondero, contudo, que, pragmaticamente, a solução deve ser pensada levando em conta também a experiência, ou o que acontece na realidade (quarta diretriz do método processual pragmático).
    Levando em conta isso, não podemos desconsiderar que a reversão do produto da multa para o autor, não obstante seja eficiente quanto à cobrança, tem produzido o indesejável efeito prático de inibir juízes e tribunais em fixar valores de multa realmente altos para coagir, tudo pelo receio de enriquecer desproporcionalmente o autor. Esse dado da realidade já foi registrado, inclusive, na experiência estrangeira, conforme denunciei na minha dissertação de mestrado.
    Em outras palavras, a pesquisa empírica revela que a solução atual - de destinar ao autor o produto da multa - não está dando certo, porque fulmina o caráter coercitivo da multa, dado que os valores acabam sendo fixados em patamares insuficientes ou são revisados para baixo no cálculo final da multa que incidiu.
    Se essa solução não funciona, temos que buscar uma solução melhor, a qual , ao meu ver, parece ser a do texto original do Senado: ao autor, até o limite da sua obrigação, ao Estado o restante; se for o Estado o responsável pelo descumprimento, o excedente vai para uma instituição social.
    Um forte abraço e continue a (re)pensar o processo civil pragmaticamente!!!

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  3. Me desculpe, mas o senhor está errado. Sua colocação possui um raciocínio limitado. Em primeiro lugar, o descumprimento da obrigação cominada é culpa exclusiva do Réu (nos casos em que o seu descumprimento não ocorreu por comprovada impossibilidade ou nos casos em que o mesmo sequer peticionou antecipadamente ao fim do prazo ao juízo para requerer justificadamente um prazo maior). Nesses casos, o Réu assume o ônus do descumprimento, não podendo ser beneficiado com descontos por afrontar o Poder Judiciário e lesionar ainda mais o Autor. Em segundo lugar, a maioria das obrigações de fazer pressupõem o atendimento a um direito do Autor já reconhecido por Sentença transitada em julgado; assim, o seu descumprimento levará a extensão da lesão ao direito no tempo, por período diretamente proporcional aos dias de descumprimento (o que fulmina a tese do enriquecimento sem causa). Devemos separar o joio do trigo: há casos em que o Autor, uma vez indenizado, poderá promover o cumprimento da obrigação descumprida (aqui sim, faz sentido a limitação); mas há outros casos em que a viabilidade do cumprimento da obrigação só poderá ser cumprida pelo Réu, hipótese em que não se pode restringir os valores a serem recebidos pelo Autor, já que a sua lesão estará se prolongando no tempo, o que justifica o valor a ser recebido (que será diretamente proporcional a lesão que se prolonga). Portanto, apesar da ordem judicial estar sendo desrespeitada, quem tem o seu direito sendo lesionado por ainda mais tempo é o Autor e não o Estado, razão pela qual não faz sentido enriquecer o Estado por uma lesão que será sofrida pelo Autor. No dia a dia o Estado já pratica verdadeira expropriação do patrimônio do povo (basta constatar, por exemplo, que mais da metade do valor do automóvel é imposto); por isso, só falta agora fazer o mesmo com o jurisdicionado em pleno processo judicial. Foi mais do que acertada a redação do CPC que concedeu o direito as astreintes ao Autor e que vedou a redução dos valores vencidos. Espero que não estraguem o Novo CPC! Eduardo M.

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