quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O PRAGMATISMO É UM HUMANISMO


Assumindo a opção evolucionista, no sentido que a razão não é um presente de uma divindade, que destacaria o homem da sua animalidade, mas uma complexidade adaptativa decorrente da necessidade de sobreviver à adversidade ambiental, o pragmatismo é humanista. Mas não se trata de render homenagens à notabilidade das capacidades humanas (culto à humanidade[1]), mas sim prestigiar a ideia de que “não há outro legislador senão o próprio homem”,[2] a quem compete definir os seus rumos no mundo, agindo sobre ele.



Aliás, FERDINAND SCHILLER concebia o pragmatismo como a aplicação do humanismo à teoria do conhecimento,[3] na medida em que

human interest, then, is vital to the existence of truth: to say that the truth has consequences and that what has none is meningless, means that it has a bearing upon some human interest. Its ‘consequences’ must be consequences to some one for some purpose.[4]

Dentro do projeto humanista, o pragmatismo conversa bem com o existencialismo, iniciado com SOREN KIERKEGAARD (1813-1855), mas densificado, dentre outros, por JEAN PAUL SARTRE (1905-1980).
De fato, o existencialismo ateu de SARTRE parte do princípio de que, no ser humano, a existência precede a essência, ou seja, “o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define”.[5] Não há, portanto, natureza humana, porque não há Deus ou qualquer entidade superior e anterior para concebê-la. Assim, “o homem não é mais que o que ele faz”; é, “antes de mais nada, um projeto que se vive subjetivamente”.[6] Diante disso, SARTRE afirma que “a vida não tem sentido a priori. Antes de viverdes, a vida não é nada; mas de vós depende dar-lhe um sentido, e o valor não é outra coisa senão esse sentido que escolherdes”.[7] Nesse sentido, WILLIAM JAMES, estabelecendo diferenças entre o racionalismo e o pragmatismo, é também existencialista ao afirmar que “o contraste essencial é que, para o racionalismo, a realidade já está pronta e completa desde toda a eternidade, enquanto para o pragmatismo está ainda sendo feita, e espera parte de seu aspecto do futuro”.[8] 

A vida sem sentido a priori, o “confronto desesperado entre a interrogação humana e o silêncio do mundo”,[9] traduzida pelo “desespero” de KIERKEGAARD,[10] pela “náusea” de SARTRE,[11] pelo “absurdo” de ALBERT CAMUS (1913-1960)[12] ou pela “angústia” de GRACILIANO RAMOS (1892-1953),[13] coaduna-se com a negação pragmatista das razões a priori,[14] com a realidade que “está ainda sendo feita”.


Da esq. p/ dir.: Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Jasper, Chestov, Marcel, Sartre, Camus 
Mas ao contrário do que essas palavras possam sugerir, nem o existencialismo, nem o pragmatismo, são pessimistas ao aceitarem o abandono e o absurdo de uma vida sem sentido a priori, sem as ilusões de proteção ou de orientação sobrenaturais. O existencialismo pragmático é otimista, pois devolve ao homem a responsabilidade por sua própria vida e seu próprio destino, libertando-o do determinismo,[15] ao mesmo tempo em que lhe dá ferramentas para (re)construir o significado de sua existência.[16]

E tal qual o pragmatismo, o existencialismo também se revela como uma filosofia da ação,[17] na medida que compreende o homem, em essência, senão como seu projeto, que “só existe na medida em que se realiza”, não sendo, portanto, “nada mais do que o conjunto dos seus atos, nada mais do que a sua vida.”[18] ALBERT CAMUS, em um dos seus textos filosóficos anteriores à dissidência com SARTRE, realiza verdadeira proclamação pragmática, ao defender que

Se eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que tal outra, respondo que é pelas ações a que ela se compromete. Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a maior tranquilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira. É profundamente indiferente saber qual dos dois, a Terra ou o Sol, gira em torno do outro. Em suma, é uma futilidade.[19]

Talvez a diferença entre ambas as correntes do pensamento humanista seja apenas de amplitude, pois o pragmatismo não se pretende como explicitação do lugar do homem no mundo, como o existencialismo parece se apresentar. Não há exclusão entre elas, senão diferença de propósitos sobre as mesmas bases. Como salienta RICHARD RORTY, tanto o existencialismo de SARTRE, como o pragmatismo de JAMES, tentaram convencer os seres humanos que não deviam mais construir substitutos de Deus, complementando, assim, o projeto humanista iniciado com o Renascimento e o Iluminismo.[20]







[1] SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 21.
[2] SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 21.
[3] WAAL, C. de. Sobre pragmatismo, p.86.
[4] SCHILLER, F. C. S. Studies in humanism, p. 5. Tradução livre: “Interesse humano, então, é vital para a existência da verdade: dizer que a verdade tem consequências e que aquilo que não tem consequências não tem significado, significa que ela tem relevância para com algum interesse humano. As suas consequências devem ser para alguém por algum propósito.”
[5] SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 6.
[6] SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 6.
[7] SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 21.
[8] JAMES, W. Pragmatismo, p. 138.
[9] CAMUS, A. O homem revoltado, p. 16.
[10] cf. KIERKEGAARD, S. O desespero humano.
[11] cf. SARTRE, J P. A náusea.
[12] “Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo.” (CAMUS, A. O mito de Sísifo, p. 21).
[13] cf. RAMOS, G. Angústia.
[14] JAMES, W. Pragmatismo, p. 47. No mesmo sentido: “Não se fixando em premissas a priori verdadeiras, não se detendo em propostas ontológicas, não aceitando os dogmas absolutos, não se apoiando no pressuposto da dialética materialista, derrubando os fetiches metafísicos, desprezando as respostas universais, desconstituindo o estatuto conservador das políticas conservadoras, abalando as bases dos movimentos burgueses, o existencialismo, no entanto, possui um apego, que irá ser exatamente o apego pelo contingencial, pelo situacional. Não há nenhum idealismo além do que agora se pode ter, do que agora se pode identificar como justo ou certo. Nesse sentido, o futuro abre-se como um leque de possibilidades, e para o futuro as respostas são inimagináveis, pois na liberdade dos homens mora a responsabilidade de construí-lo.” (BITTAR, E. C. B.; ALMEIDA, G. A. de. Curso de filosofia do direito, p. 357-358).
[15] “Dostoiévski escreveu: ‘Se Deus não existisse, tudo seria permitido’. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre.” (SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 9).
[16] “Os deterministas, que negam o livre-arbítrio, que dizem que o homem individual não origina coisa alguma, mas meramente transmite ao futuro o empuxo total dos acontecimentos cósmicos passados, dos quais é uma expressão sumamente diminuta, reduzem o homem. (...). Pragmaticamente, livre-arbítrio significa novidades no mundo, o direito de esperar que em seus elementos mais profundos, como em seus fenômenos superficiais, o futuro não possa repetir-se identicamente e imitar o passado. (...) Certamente, a única possibilidade que se pode reivindicar racionalmente é a possibilidade de que as coisas possam ser melhores.” (JAMES, W. Pragmatismo, p. 75-77).
[17] SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 22.
[18] SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo, p. 13.
[19] CAMUS, A. O mito de Sísifo, p. 19.
[20] RORTY, R.; ENGEL, P. Para que serve a verdade?, p. 61-62.

7 comentários:

  1. Dr. Vicente, o primeiro livro " sério " que eu li foi "A Náusea" de Jean-Paul Sartre, induzida por seu pai, quando eu tinha 14 anos! Dali em diante nunca mais me livrei da sensação do título do livro frente aos desastres da vida. Nenhuma religião ( e olha que passei por quase todas) teve argumentos tão fortes quanto aos do mestre do Existencialismo...
    Parabéns!
    Sueli Ataide

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    1. Obrigado pelo seu comentário! A sensação que eu tenho lendo os existencialistas, especialmente Sartre e Camus, é um reforço da nossa própria responsabilidade pelo nosso próprio destino. Somos condenados à liberdade - escreveu Sartre. Assim - tenho dito muito isso para os meus alunos - não devemos atribuir a ninguém a responsabilidade por nossos êxitos e por nossos fracassos. Você já há muito sabe que "nós somos o produto das nossas escolhas." Nada disso me entristece ou desanima. Pelo contrário, motiva-me pensar que o meu destino depende apenas do que eu fizer acontecer. No campo jurídico, o pragmatismo-existencialista reclama a responsabilidade dos juízes por suas decisões. Nada de culpar o legislador ou qualquer outro substituto. Os juízes e tribunais devem assumir as consequências práticas de tudo o quanto decidem. Por isso a necessidade de uma nova metodologia consequencialista: a metodologia pragmática. Um forte abraço.

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  2. O que me chama a atenção é o " sentir-se abandonado" sem a figura protetora de um Deus, que você invoca nos momentos de desespero. É como se o ser humano estivesse jogado no universo, à própria sorte, sem ter onde agarrar-se! E aí você traz a beleza da responsabilidade do homem por suas decisões!!!!Aquilo que minha velha mãe, a Vó Cice dizia:" plantou limões, não vai colher laranjas!
    Nada mais forte, nada mais justo!!!!

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    1. É exatamente o "absurdo" da existência humana, referido tantas e tantas vezes pelos existencialistas.

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  3. Professor, sinceramente, estou impressionado com o pragmatismo. Confesso que, no pouco tempo de vida jurídica que possuo, estava cansado de tantos conceitos fracassados, de soluções ineficazes, de tantos sofismas. Confesso, também, que não tinha vontade de atuar com algo estéril e sem vida. Não posso ficar sem agradecer por me apresentar ao pragmatismo. Sinto que recebi, em especial nos últimos dias, uma carga motivacional muito grande, devido ao estudo do pragmatismo. Com toda certeza vou estender essa linha de pesquisa em uma futura dissertação de mestrado e tese de doutorado. Muito obrigado professor. Assim, aproveito para reforçar meus agradecimentos que veiculei por outra rede social: "Agora, após concluir o trabalho, tenho que comentar. O estudo do método pragmático foi uma das melhores coisas que pode acontecer na minha vida como advogado. Estou com novos olhos sobre o direito. Há esperança para um direito aperfeiçoado e um país melhor. O pragmatismo salvou meus dias. Obrigado professor Vicente Ataide Jr., por me apresentar para essa nova concepção do direito."


    Agora, após concluir o trabalho, tenho que comentar. O estudo do método pragmático foi uma das melhores coisas que pode acontecer na minha vida como advogado. Estou com novos olhos sobre o direito. Há esperança para um direito aperfeiçoado e um país melhor. O pragmatismo salvou meus dias. Obrigado professor Vicente Ataide Jr., por me apresentar para essa nova concepção do direito."

    Muito obrigado mesmo professor. Vou continuar acompanhando seus estudos!

    Um forte abraço.

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